Inicialmente, para uma melhor avaliação sistêmica, imperioso se faz rememorar os passos histórico-legislativos atinentes à Lei de Segurança Nacional. Nesse sentido, vale destacar a existência de alguma divergência sobre seu marco inaugural, na medida em que, para uns, é revelado desde o Decreto 4.269/1921, que regulava a repressão ao anarchismo (sic); para outros, a fonte normativa atinente à temática foi a Lei no. 38/1935, que positivou o primeiro conjunto de regras voltado a punir crimes “contra a ordem política e social”.
A partir de então, outros textos legislativos foram regulando a matéria. Após a denominada Revolta Comunista de 1935, o governo aprovou uma segunda lei (Lei n. 136/1935) para ampliar os crimes “contra a ordem política e social” e restringir ainda mais a atuação política da classe trabalhadora. No ano de 1953, surge a Lei no. 1.802, dispondo sobre “crimes contra o Estado e a ordem político-social”, e substituindo as determinações da ditadura do Estado Novo, bem como restringindo a competência de atuação da Justiça Militar para determinados crimes. Anos mais tarde, o Decreto-Lei 314/1967, baseado no Ato Institucional n.2, substituiu a Lei no. 1802/1953, e instituiu a primeira Lei de Segurança Nacional do regime ditatorial. Essa normativa, tal como as outras três aprovadas ao longo dos governos militares, refletiu a chamada Doutrina de Segurança Nacional da época. Na mesma esteira, o texto legal de 1967 sofreu importantes alterações (em especial, pelo Decreto-Lei no. 510/1969), até ser totalmente substituído pelo Decreto-Lei no. 898/1969, que criminalizava a greve nos serviços públicos e nas atividades essenciais, a propaganda subversiva e, inclusive, passou a prever a pena de morte e a prisão perpétua, situação alterada quase uma década depois, com o advento da Lei no. 6.620/1978. Essa lei, a seu turno, vigeu até a entrada em vigor da Lei no 7.170/83, para cujas características principais são necessárias remissões mais eficazes.
Como mencionado, na década de 1980, o Congresso Nacional, já bipartidário e no processo de abertura democrática, aprovou a Lei de Segurança Nacional (Lei no. 7.170/1983) em vigência até recentemente. Vale destacar que, apesar de enunciar, entre seus objetivos, “a proteção do regime representativo e democrático”, aquele texto legal preservava semelhanças com as leis anteriores, entre as quais: a. o julgamento dos autores das condutas incriminadoras, pela Justiça Militar; b. a incomunicabilidade do indiciado pelo prazo de cinco dias; c. tipos penais abertos — dispositivos que não indicavam, com precisão mínima, a conduta considerada criminosa, sedimentando a imprecisão e, consequentemente, adubava campo fértil para injustiças, como se denotava do seu art. 23, que punia a conduta de “incitar subversão da ordem política” sem, contudo, indicar quais comportamentos poderiam ser assim considerados.
Recentemente, surge a Lei no. 14.197/21, que acrescentou o Título XII na Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), relativo aos crimes contra o Estado Democrático de Direito; e revogou a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional), e dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).
A partir de então, indisfarçável desencontro assolou o mundo jurídico, em especial no que se refere à natureza jurídica dos tipos penais constantes da novel legislação, sobretudo, se podem ou não ser considerados delitos políticos, tendo em vista a existência de um Estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito, por sua vez, caracteriza-se pela soberania popular, por uma Constituição elaborada em conformidade com a vontade do povo, por eleições livres e periódicas, por um sistema de garantias dos direitos humanos, e pela divisão de poderes independentes, harmônicos entre si e fiscalizados mutuamente, a saber: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nessa seara, alguns entendem que, mesmo sob a égide da nova lei, e sob o manto do estado democrático de direito, ainda devem ser catalogados como crimes políticos; outros, por sua vez, não mais os consideram como tais, atribuindo-lhes a rubrica de crimes comuns.
A relevância do debate transcende o mundo acadêmico, haja vista que suas repercussões práticas são relevantes, a depender do entendimento firmado; ou seja, as consequências advindas de uma ou outra conclusão são de grande repercussão.
A análise, portanto, exige cautela. Conceitualmente, o crime político se caracteriza pelo bem jurídico afetado e pela motivação que move o agente. Trata-se de delito praticado contra a ordem estabelecida, com finalidade ideológica. Assim, não basta que a intenção do ato seja política, sendo fundamental a afetação da organização de determinado regime instituído.
Assim, inclusive, já dispôs o STF, no HC 73451: “Certo é que, tendo em vista o direito positivo brasileiro, a Lei 7.170, de 1983, para que o crime seja considerado político, é necessário, além da motivação e dos objetivos políticos do agente, que tenha havido lesão real ou potencial aos bens jurídicos indicados no artigo 1º da referida Lei 7.170, de 1983, ex vi do estabelecido no art. 2º desta. É dizer, exige a lei lesão real ou potencial à integridade territorial e a soberania nacional’ (art. 1º, I), ou ao regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito (art.1º, II), ou à pessoa dos chefes dos Poderes da União (art. 1º, III). O tipo objetivo inscreve-se, está-se a ver, no inciso II do art. 2º, enquanto que o tipo subjetivo no inciso I do mesmo art. 2º, certo que a motivação e os objetivos do agente devem estar direcionados na intenção de atingir os bens jurídicos indicados no art. 1º”.
Sabe-se que, no Brasil, os delitos de natureza política (crimes políticos) gozam de benesses ímpares, de naturezas constitucional e infraconstitucional. Apenas a título de ilustração, cite-se a impossibilidade de extradição do estrangeiro por crime político (art. 5º, LII, CF); atuação do Supremo Tribunal Federal como instancia recursal ordinária (art. 102, II, b, CF); competência da Justiça Federal para processar delitos de natureza política (art. 109, IV, CF); a incompatibilidade com os efeitos da reincidência (art. 64, CP); a não obrigatoriedade ao trabalho (art. 200, LEP).
Inegável que existe diferença na capitulação de um ato como crime político ou comum, conforme o regime político vigente em determinado país seja democrático, totalitário ou ditatorial.
Dessa forma, o sopesamento entre os benefícios a eles inerentes e os delitos agora integrantes do Título XII, da Parte Especial do Código Penal (Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito), repita-se, em estado democrático, evidencia a inviabilidade de mantença daquelas condutas penalmente tipificadas, como crimes políticos, devendo, assim, serem considerados crimes comuns.
Em adição, e como reforço conclusivo, tem-se como fundamental, na temática, aferir a interpretação do texto normativo segundo a vontade do legislador, também reputada como “intencionalista” ou “originalista”.
Assim sendo, o que efetivamente colima o intérprete segundo esta concepção é aquilatar a verdadeira vontade do legislador, seus reais intentos. Simbolizando, de forma fidedigna, tal forma de conceber, Garcia Amado expõe:
“La Segunda concepcion la llamares intencionalista. Para las doctrinas de la interpretación que encajan bajo esse rótulo, los enunciados legales son el cauce a través del que se expresan ciertos contenidos de voluntad o intenciones, que son los que constitueyn el componente último del sentido de las normas jurídicas. El texto legal es solamente el veículo, mas o menos fiel o más ou menos certero, de essas intenciones. Interpretar es, por tanto, en última instância, averiguar y poner de relieve el contenido de tal intención, intención que es la del autor, la del creador de la norma, de aquella o aquellas personas que la dictaron. El texto es el punto de partida, la referência primeira y la mejor pista de dicha inténcion, pero ya no se trata, como para la teoría anterior, de limitarse a aclarar el significado de ese texto, o sea, de poner de relieve lo que el texto quiere decir, sino de conocer lo que el legislador quiso decir al dar a luz dicho texto.”
Tal modelo interpretativo não se limita somente ao texto legal, admitindo-se que ele, por vezes, não seja capaz de traduzir todas as vontades do legislador. Logo, torna-se mister sopesar o instante histórico da sua edição normativa, confrontar os debates parlamentares, apurar as discussões que se desenvolveram à época, observar o processo legislativo, enfim, aclarar o contexto do instante no qual determinada positivação passou a existir, os motivos que levaram o legislador a editá-lo e os fins que o perseguia com referida produção.
Indisfarçável, assim, que o intento legislativo não se coaduna com interpretação diversa, especialmente ao se considerar a relevância da soberania nacional, bem jurídico que se almeja tutelar, com referidas incriminações. Inaceitável, ainda, tolerar que agentes praticantes de condutas atentatórias ao estado democrático de direito, algumas apenadas com 15 (quinze) anos de reclusão, possam ser agraciados com a desobrigação do trabalho durante a execução da pena, desconsideração de sua condenação para fins de reincidência futura, entre outros benefícios positivados.
Havendo democracia, parece não haver justificativa mínima, tampouco espaço, para atribuir a qualquer delito, as características e efeitos de um crime político.
Por outro lado, não se pode descurar da existência de comportamentos motivados por ideologia política, ou seja, por um conjunto de princípios que expressam uma determinada visão de mundo, isto é, ideias que representam um grupo de pessoas com opiniões semelhantes sobre sociedade, economia, valores e política. As ideologias também podem representar um tipo de pensamento ou modo de funcionamento de uma época da história.
As diferentes, e por vezes conflituosas ideologias, aliadas à intransigência exagerada e polarizações extremadas, sugerem, em determinadas circunstâncias, práticas delitivas. Porém, não se pode equiparar o crime praticado por motivo de ideologia política, com crime político: são universos distintos!
Nesse sentido, se a intolerância política, fomentada por ideologia contraposta, redundar em prática delitiva, esse comportamento será um crime comum, com as eventuais consequências advindas de sua real motivação, certamente consideradas na fixação da pena ou como elemento qualificador da conduta, desde que haja previsão legal. Não mais do que isso!
Em resumo, a melhor exegese sugere, a princípio, que não mais se pode cogitar de crime político no Brasil após a revogação da Lei no. 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), em especial, pela sua absoluta incompatibilidade e contrariedade ao vigente sistema democrático e princípios constitucionais.
Advogado criminalista, sócio fundador da Pantaleão Sociedade de Advogados e professor de Direito Penal e Processo Pena