Uma inoportuna judicialização, tendo como foco a mudança de Z2 para Z4 no zoneamento ecológico e econômico (ZEE) das áreas preservadas do município de São Sebastião, no Litoral Norte do Estado de São Paulo, ameaça invalidar o entendimento democrático e participativo promovido durante seis (6) anos, de 2010 a 2016, pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), órgão máximo consultivo e normativo do Sistema Ambiental Paulista, por meio de audiências públicas realizadas com os entes públicos e privados daquela região.
Como grande parte da região é área de proteção permanente, as terras da região foram enquadradas como Zona Terrestre 02, que permite exploração econômica com limitações, justamente para garantir a preservação do meio ambiente. No entanto, cinco empresas do mesmo grupo econômico, liderado pela Alemoa Empreendimentos, proprietárias de 6,5 milhões de m2 na área do Município de São Sebastião, ingressaram no Poder Judiciário com medida cautelar na tentativa de cancelar o zoneamento, pleiteando que partes de suas propriedades na região fossem enquadradas como Zona Z4-OD (zona de ocupação dirigida), para viabilizar o tipo de exploração econômica pretendido por elas nas áreas atualmente protegidas, ameaçando a região com sequelas ambientais irreversíveis.
Poderio econômico
Mostrando seu poderio econômico, esse conjunto de empresas, que pretende ocupar com construções imobiliárias 10% dessa gleba, ou seja, 680 mil m2 (uma área maior que toda a região da Juréia, Praia do Engenho e Barra do Una juntas), entrou com uma petição afirmando que durante a condução da reunião pelo Grupo Setorial do Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte (GERCO-LN), na qual deliberaram em audiência pública todos os requerimentos formulados, não teria sido submetido à discussão e votação o requerimento protocolado pelo grupo, no qual as empresas pretendiam fossem definidas como Z4 as áreas situadas dentro da extensão de suas propriedades.
Na época, o grupo chegou a conseguir uma liminar concedida por um juiz plantonista para suspender o andamento dos trabalhos. Contudo, pouco tempo depois, a decisão foi cassada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que, inclusive, por ocasião do julgamento do recurso, deu mostras de que não teria havido qualquer irregularidade ou vício na condução dos trabalhos em âmbito administrativo, refutando a tese levantada pelas empresas autoras da ação, e consignando que “o mérito dos requerimentos administrativos propostos pelas autoras foi discutido e apreciados pelos membros do Grupo Setorial do Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte”.
Segundo ficou apurado, a alegação das empresas não se sustenta, uma vez que o procedimento para a mudança do zoneamento de toda aquela região foi realizado de forma bastante meticulosa, tendo durado mais de 6 (seis) anos e contando com inúmeros atores interessados no planejamento estratégico da região, como representantes das prefeituras, do Governo do Estado e da sociedade civil, ONGs, associações de classe, associações de pescadores, comunidades tradicionais, universidade, entre outros. Na ocasião, conforme as atas das discussões realizadas, inúmeras propostas referentes às áreas foram analisadas, inclusive a das empresas autoras. Foi então que se chegou à atual configuração do ZEE, tendo como premissa básica a sustentabilidade ecológica e a proteção dos recursos naturais, em favor não somente dos atuais habitantes da região como das futuras gerações, tendo em vista o reconhecimento do valor intrínseco da biodiversidade local e de seus componentes.
Percebendo a iminente derrota no pleito, o grupo passou a focar seus esforços jurídicos na obtenção de um precedente inusitado: as empresas buscam obter do Poder Judiciário uma decisão que altere o zoneamento de suas vastas propriedades de Z2 para Z4-OD, viabilizando em seu interesse a exploração econômica da região, em detrimento do posicionamento dos demais entes públicos e privados daquela região.
Argumentos das fontes envolvidas
Para o experiente promotor público Tadeu Salgado Ivahy Badaró Júnior, que representa o Ministério Público e há anos integra o GAEMA (Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente), a “presente demanda possui notória pretensão de influir diretamente na política pública de zoneamento ambiental, destarte, no próprio direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma vez que visa alterar o Zoneamento Ecológico-Econômico do Litoral Norte na região dos imóveis de propriedade das requerentes para reduzir o grau de proteção conferido pelo ordenamento jurídico”.
Ciente do que representa, economicamente, a obtenção de um posicionamento judicial favorável, por mais fora do padrão que seja, principalmente nos dias atuais, em que a preservação ambiental é pauta relevante não somente no Brasil, mas em todo o mundo, o grupo procurou um renomado escritório especializado em Direito Ambiental e custeou a elaboração de um laudo judicial orçado em mais de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais) que, surpreendentemente, em parte, acabou atendendo a seus interesses. Segundo o laudo apresentado, apesar de a região da Praia do Engenho ser uma das áreas mais conservadas da região, mais até do que as a regiões próximas da Juréia e Barra do Una, seria viável alterar seu zoneamento de Z2 para Z4.
A conclusão do laudo chama atenção, principalmente, porque durante as inúmeras reuniões setoriais realizadas por vários órgãos do sistema ambiental houve a constatação de que as áreas das empresas autoras eram frágeis, com alto grau de suscetibilidade, devendo ser preservadas, ao invés de destinadas à expansão urbana, considerando os possíveis impactos ambientais na região.
Um detalhe importante foi que, logo após a entrega do laudo, um dos peritos que o assinam tentou se desligar da ação, mas a juíza Fernanda Henriques, da 2ª Vara da Fazenda, não permitiu, impondo a obrigatoriedade de sua permanência na ação para responder aos inúmeros questionamentos já formulados pelas demais partes.
Na verdade, o laudo apresentado está sendo duramente questionado, tecnicamente, não apenas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, mas também pelo ICC (Instituto Conservação Costeira), uma associação sem fins lucrativos criada para promover o desenvolvimento sustentável e evitar danos ambientais, que entrou como amicus curiae na ação judicial. O ICC, inclusive, foi uma das entidades que compôs o Grupo Setorial do Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte, na época da aprovação do atual zoneamento ecológico, participando ativamente das discussões.
Os técnicos do Governo do Estado de São Paulo, por sua vez, dizem que a alteração de zoneamento para Z4-OD (zona de ocupação dirigida) não se justifica, considerando que a zona Z4 é aquela que “apresenta os ecossistemas primitivos significativamente modificados pela supressão de componentes”, “necessitando de intervenções para sua regeneração parcial”. E afirmam que o “laudo apresentado não atesta esse nível de degradação e não há indícios de que as glebas necessitem de intervenções de manejo para assegurar a sua resiliência”, reiterando que a “alteração de enquadramento impõe risco à biota local por permitir usos urbano, industrial, turístico e pesqueiro”.
Além das eventuais inconsistências metodológicas constantes no laudo apresentado, que vai de encontro à ampla base técnica do processo participativo que embasou a atual proposta de zoneamento, e que envolveu reuniões públicas com distintos segmentos sociais, bem como a vinculação do gerenciamento costeiro com os princípios e diretrizes estabelecidos pela legislação federal e estadual, o ICC afirma que alterar a classificação de qualquer área inserida no ZEE representaria uma verdadeira afronta à democracia, ao direito transindividual do meio ambiente e ao postulado da supremacia do interesse público sobre o particular. Para o Instituto, “tal pretensão influirá diretamente na política pública de zoneamento equilibrado, abrindo precedentes para que novas ações sejam distribuídas e trazendo insegurança jurídica”.
Os representantes da comunidade e do poder público e privado envolvidos na ação afirmam que, se a mudança de Z2 para Z4 se concretizar, haverá prejuízo para todos que ocupam a área, porque não serão respeitadas as limitações estabelecidas estrategicamente para preservação econômica e ambiental da região, e o resultado terá impacto significativo para as futuras gerações.
Mas o risco vai além. Se o Poder Judiciário eventualmente interferir na decisão política adotada, fruto de um amplo entendimento democrático, abrirá um precedente perigoso, estimulando novas incursões judiciais no mesmo sentido não somente para outras áreas da região, mas para quaisquer áreas preservadas no país.
Paradoxo e denúncia criminal
Paradoxalmente, a mesma empresa que integra o grupo econômico em pauta, e que busca alegar, para o sucesso de suas pretensões, que a região está desconfigurada a ponto de receber novas construções, entrou com um pedido de redução de 90% do IPTU referente à gleba de terras situada entre a Praia do Engenho e Barra do Una (cadastro municipal nº 3132.221.6255.0202.0000) atinente aos anos de 2014 e 2015, sob a alegação de que o imóvel se encontra inteiramente coberto por vegetação nativa de Mata Atlântica e zoneamento Z2, com alta restrição ambiental, ou seja, exatamente por atuar em uma área de proteção que agora ela mesma quer desqualificar.
Entre as inúmeras informações ambientais sobre as áreas da região, que embasam o respectivo pedido de isenção quase total do IPTU, o grupo empresarial destaca “as restrições do local para corte de vegetação nativa, primária ou secundária diante o paisagismo notável, fauna e flora típicas, além de proteção de mananciais e erosões”; que “em torno da propriedade apresenta-se proteção que deve ser feita ao Parque Estadual da Serra do Mar, a maior e mais importante Unidade de Conservação do Estado de São Paulo”; que “as glebas abrangidas pelo imposto estão inseridas na Z2, onde a meta mínima de conservação é de 80 a 90% das zonas com cobertura ambiental nativa, garantindo a diversidade biológica das espécies”; que isso definia “a vocação daquelas terras e o empenho das políticas públicas nesse sentido”; que “a floresta é de transição da Mata Atlântica primária, ou seja, floresta de restinga em regeneração”; e que as áreas estariam “ocupadas por população tradicional, mais próxima à BR 101, bem vegetadas e em acelerado estado de recuperação”. Curiosamente, todos esses argumentos foi que embasaram a decisão democrática e comunitária de manter o zoneamento Z2 para aquela região.
Além desse paradoxo, há ainda uma denúncia criminal por danos causados pelo grupo empresarial à região em suas atividades de incorporador. Na ação penal 0000106-74.2014.403.6135, que tramita na 1ª Vara Federal de Caraguatatuba contra a Alemoa S.A. e seus representantes, atualmente em fase de instrução criminal, uma denúncia criminal elaborada com base no Inquérito Policial n. 37/2012 revela que a Alemoa S.A. Imóveis e Participações estaria ocupando área localizada no interior da terra indígena guarani Ribeirão Silveira, declarada pela Portaria nº 01.286/2008 (sub judice), em Barra do Una, município de São Sebastião, causando imensos danos ambientais indiretos, alguns irreversíveis, ao Parque Estadual da Serra do Mar, unidade de conservação de proteção integral (artigo 80, 111, c/c artigo 10, § 40, da Lei 9.98512000), inserida em área de interesse da União, bem como impedindo ou dificultando a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação, com construções não autorizadas e criação de búfalos no local, crimes capitulados nos artigos 40 e 48 da Lei 9.605/98.
O referido Inquérito Policial foi instaurado para apurar possível crime de esbulho possessório, “após servidor da Fundação Nacional do índio (Funai) ter observado a construção de benfeitoria e a derrubada de uma cerca e mourão, com possível ocorrência de danos ambientais e invasão da terra indígena guarani Ribeirão Silveira”, constatando que o objetivo da ação era “impedir a regeneração da vegetação da Mata Atlântica e manter a área ‘limpa’ para futura instalação de empreendimento imobiliário, já que atualmente o imóvel encontra-se em Z2T do Zoneamento Ecológico-Econômico-LN, em que é expressamente proibida a implantação de loteamento”.
Em síntese, a ação judicial pretende que o Poder Judiciário se sobreponha à decisão administrativa que garantiu, devidamente, um relevante grau de proteção ao meio ambiente, em área na qual se faz presente vegetação de Mata Atlântica em estágios médio e avançado de regeneração, para explorarem economicamente, via edificação, áreas sensíveis de proteção ambiental. A iniciativa desconsidera, porém, que o zoneamento não se resume ao mero estabelecimento de diretrizes e restrições para determinado território, mas sim um planejamento estratégico que leva em conta a relevância ecológica, as limitações e fragilidades dos ecossistemas com prognósticos futuros.
Maria Fernanda Carbonelli Muniz
Presidente do Instituto Conservação Costeira